Esquizofrenia
Wagner Gattaz é médico psiquiatra e professor de
psiquiatria no Instituto de Psiquiatria da
Universidade de São Paulo
A esquizofrenia é uma doença
psiquiátrica endógena, que se caracteriza pela
perda do contato com a realidade. A pessoa pode
ficar fechada em si mesma, com o olhar perdido,
indiferente a tudo o que se passa ao redor ou,
os exemplos mais clássicos, ter alucinações e
delírios. Ela ouve vozes que ninguém mais escuta
e imagina estar sendo vítima de um complô
diabólico tramado com o firme propósito de
destruí-la. Não há argumento nem bom senso que a
convença do contrário.
Antigamente, esses indivíduos
eram colocados em sanatórios para loucos, porque
pouco se sabia a respeito da doença. No entanto,
nas últimas décadas, houve grande avanço no
estudo e tratamento da esquizofrenia que, quanto
mais precocemente for tratada, menos danos trará
aos doentes.
PRINCIPAIS SINTOMAS
Drauzio – A esquizofrenia é uma
doença conhecida há quanto tempo?
Wagner Gattaz – Há
alguns milênios eram descritos casos de psicose
que, segundo os critérios atuais, poderiam ser
classificados como esquizofrenia. Por isso,
dizemos que a esquizofrenia é uma doença própria
da natureza humana e que sempre existiu, pelo
menos é o que provam descrições históricas muito
antigas.
Drauzio – Quais são seus
principais sintomas?
Wagner Gattaz –
Grosso modo, há dois tipos de sintomas: os
produtivos e os negativos. Os sintomas
produtivos são, basicamente, os delírios e as
alucinações. O delírio se caracteriza por uma
visão distorcida da realidade. O mais comum, na
esquizofrenia, é o delírio persecutório. O
indivíduo acredita que está sendo perseguido e
observado por pessoas que tramam alguma coisa
contra ele. Imagina, por exemplo, que instalaram
câmeras de vídeo em sua casa para descobrirem o
que faz a fim de prejudicá-lo.
As alucinações caracterizam-se
por uma percepção que ocorre independentemente
de um estímulo externo. Por exemplo: o doente
escuta vozes, em geral, as vozes dos
perseguidores, que dão ordens e comentam o que
ele faz. São vozes imperativas que podem levá-lo
ao suicídio, mandando que pule de um prédio ou
de uma ponte.
Delírio e alucinações são
sintomas produtivos que respondem mais
rapidamente ao tratamento. No outro extremo,
estão os sintomas negativos da doença, mais
resistentes ao tratamento, e que se caracterizam
por diminuição dos impulsos e da vontade e por
achatamento afetivo. Há a perda da capacidade de
entrar em ressonância com o ambiente, de sentir
alegria ou tristeza condizentes com a situação
externa.
Drauzio – Cite exemplo de um caso
que você encontrou na clínica.
Wagner Gattaz – Vou
citar o exemplo de um caso de esquizofrenia do
tipo paranoide que ocorreu ainda no tempo da
Guerra Fria. O paciente tinha convicção absoluta
de que a energia de seus pensamentos estava
sendo roubada por um satélite russo e era
transformada em energia bélica para destruir os
satélites americanos.
Drauzio – O paciente considera o
que sente absolutamente lógico e real?
Wagner Gattaz – Existe
uma lógica perfeita dentro do delírio, só que
ela não corresponde à realidade. Uma das
características do delírio, aliás a que o
diferencia do erro, é que não se consegue
removê-lo com contra-argumentação lógica. A
convicção é absoluta e tentar dissuadi-lo, é
inútil. Ouvir – “Imagine,
você não está sendo perseguido. Você está
imaginando coisas” -,
basta para acreditar que está diante de mais um
de seus perseguidores, de alguém que faz parte
do complô armado para destruí-lo.
SINTOMAS NEGATIVOS
Drauzio – Como transcorre o dia a
dia de um paciente com sintomas negativos?
Wagner Gattaz –
Na verdade, 80% das esquizofrenias começam com
os sintomas negativos. Delírio e alucinação
chamam mais a atenção. Já os sintomas negativos
ocorrem mais no íntimo das pessoas e causam
menos impacto nos outros. É o caso do indivíduo
que, certo dia, não vai trabalhar, não avisa
ninguém e passa o dia todo deitado, tomando café
e fumando. A família percebe o olhar distante,
como se estivesse em outro mundo. Ele não se
importa com o que acontece ao redor, não cuida
da higiene pessoal nem se alimenta direito.
Geralmente, esses sintomas marcam o começo da
doença, a fase chamada tremapsicótico, marcada
por tensão e ansiedade muito grande. A pessoa
sente que algo está acontecendo, mas não sabe
dizer o que é.
Drauzio – A família percebe que
ele está diferente e não se relaciona com os
outros como fazia antes. O paciente nota essas
mudanças?
Wagner Gattaz – Ele
percebe que algo está acontecendo a seu redor,
mas acha que são coisas que os outros estão
armando contra ele. Isso é característico da
esquizofrenia. O paciente se considera uma
vítima das circunstâncias externas. Na verdade,
nesse momento, não tem a consciência crítica de
que está adoecendo.
EVOLUÇÃO DO PROCESSO
ESQUIZOFRÊNICO
Drauzio – Você diz que, em geral,
a doença começa por um certo alheamento em
relação às circunstâncias que rodeiam o paciente
e que o quadro de alucinações e delírios surge
mais tarde. Como se processa a evolução da
doença?
Wagner Gattaz – Varia
de indivíduo para indivíduo. O processo
esquizofrênico pode levar anos. Como já
mencionei, na fase inicial, a sensação de que
algo está acontecendo, mas o paciente não sabe o
quê, é caracterizada por muita tensão e
ansiedade. Em determinado momento, porém, ele
fala – “Estou
sem forças, porque estão tramando algo contra
mim e colocaram veneno na minha comida”.
Essa explicação delirante é suficiente para
diminuir o nível de tensão e ansiedade. É como
se a pessoa tivesse uma dor de causa
desconhecida e, de repente, chegasse a um
diagnóstico que, de algum modo, a
tranquilizasse.
Drauzio – Esses sintomas, tanto
os produtivos quanto os negativos, comprometem
outras áreas da cognição. Eles permitem que a
pessoa continue estudando, aprendendo coisas
novas, exercendo suas funções no trabalho?
Wagner Gattaz – Durante
um certo tempo sim, enquanto a vontade e os
impulsos estiverem preservados. A partir do
momento em que são diminuídos e achatados, a
atividade do dia a dia fica seriamente
prejudicada. Num estágio mais avançado da
doença, ocorre prejuízo cognitivo e de funções
como concentração e memória.
REAÇÃO DOS FAMLIARES E CONSUMO DE
DROGAS
Drauzio – Como costumam reagir os
familiares quando percebem que a pessoa não vai
trabalhar, está esquisita e menos afetuosa?
Wagner Gattaz – No
início, a reação é de perplexidade. A família
não encontra explicações para a mudança de
comportamento e uma das primeiras perguntas que
faz é se a pessoa não estaria consumindo drogas.
Quando começam as alucinações, então, aumenta a
suspeita de que isso possa realmente estar
acontecendo.
Na verdade, o uso de drogas não é
raro na esquizofrenia, não como causa, mas como
consequência. Sabemos que, no início, algumas
drogas exercem certo efeito sedativo,
tranquilizante, o que nas fases de ansiedade e
tensão pode melhorar o humor do paciente.
Drauzio – Qual a droga procurada
com mais freqüência? Existe alguma que acelera o
processo de instalação da esquizofrenia?
Wagner Gattaz – A
mais procurada é o álcool. A maconha também é
usada, porém com menos frequência. Consumo de
drogas mais pesadas costuma ser raro.
Bom lembrar que as anfetaminas,
popularmente conhecidas de bolinhas, quando
tomadas em excesso, podem provocar psicoses
clinicamente idênticas à esquizofrenia.
Clinicamente, é impossível diferenciá-las.
Aliás, o melhor modelo artificial de uma psicose
esquizofrênica é o causado pelas anfetaminas. A
cocaína também pode provocar quadros psicóticos
semelhantes, mas não tão característicos quanto
aos das anfetaminas.
Drauzio – Sabe-se que a cocaína
provoca delírios persecutórios. O álcool pode
disparar processos semelhantes? Tive um paciente
que bebia muito e acordou no meio da noite
ouvindo uma voz que o mandava matar a mulher.
Ficou tão apavorado, que saiu a andar pelas
ruas. Quando voltou para casa pediu à mulher que
o levasse para o hospital, porque algo de errado
estava acontecendo com ele.
Wagner Gattaz – O
álcool pode desencadear paranoias. A grande
diferença entre a paranoia da esquizofrenia e a
alcoólica reside no fato de que, neste último
caso, os pacientes reconhecem a anormalidade da
situação e pedem ajuda. Isso não ocorre pelo
menos no primeiro surto esquizofrênico. Com o
tempo, entretanto, alguns pacientes aprendem a
detectar os chamados pródomos da doença, ou
seja, as manifestações que antecedem o
desencadear da psicose. Esses ligam para o
médico, pedem ajuda, querem rever a medicação.
Infelizmente, não mais do que 20% dos pacientes
com esquizofrenia têm esse insight, isto
é, a capacidade de perceber a crise psicótica
está voltando.
MANIFESTAÇÃO NOS DOIS GÊNEROS
Drauzio – Em geral, a
esquizofrenia se instala em que faixa de idade?
Wagner Gattaz - A
esquizofrenia se instala em pessoas jovens. O
pico da instalação se dá, no homem, por volta
dos 25 anos de idade. A mulher parece estar um
pouco mais protegida. Nela a doença ocorre mais
tarde, por volta dos 29/30 anos. A incidência,
porém, é igual nos dois sexos. A proporção é de
um homem para cada mulher com a doença.
Drauzio – Nas mulheres, a
evolução é mais lenta e menos grave do que nos
homens?
Wagner Gattaz – É
mais benigna na mulher. Mais benigna
provavelmente por dois fatores: a instalação da
doença ocorre mais tarde e elas se casam mais
cedo. Assim, antes da manifestação da psicose, a
mulher tem a possibilidade de construir uma rede
social e familiar que vai ajudá-la no decorrer
da doença. Coisas simples como tomar medicação
de forma adequada e procurar o médico
precocemente fazem muita diferença.
Por casar-se mais tarde e a
doença instalar-se mais cedo, frequentemente o
homem não construiu ainda uma estrutura familiar
que lhe dê respaldo. Outro motivo, ainda objeto
de pesquisa, que torna a doença mais amena na
mulher, é que os hormônios sexuais femininos, os
estrógenos principalmente, têm na célula nervosa
um efeito semelhante ao dos medicamentos
antipsicóticos. É como se a mulher possuísse um
antipsicótico endógeno protegendo-a contra as
manifestações da doença.
Drauzio – Isso justificaria a
instalação mais tardia e a evolução mais benigna
da doença na mulher?
Wagner Gattaz – Sem
dúvida. É raro o homem adoecer pela primeira vez
depois dos 40 anos de idade. No entanto, cerca
de 10% das mulheres têm o primeiro surto
psicótico esquizofrênico depois dos 45 anos,
época em que ocorre a menopausa e cai a produção
de estrógenos.
ÍNDICE DE PREVALÊNCIA
Drauzio – Qual o índice de
prevalência da esquizofrenia na população de
modo geral?
Wagner Gattaz – A
esquizofrenia é uma doença frequente e universal
que incide em 1% da população. Ocorre em todos
os povos, etnias e culturas. Existem estudos
comparativos indicando que ela se manifesta
igualmente em todas as classes socioeconômicas e
nos países ricos e pobres. Isso reforça a ideia
de que a esquizofrenia é uma doença própria da
condição humana e independe de fatores externos.
Em cada 100 mil habitantes, surgem de 30 a 50
casos novos por ano. Neste momento, 5% da
população mundial têm esquizofrenia. Portanto,
em termos de Brasil, isso significa que 800 mil
habitantes são portadores dessa doença.
FATORES GENÉTICOS E AMBIENTAIS
Drauzio – O fato de a incidência
da esquizofrenia ser mais ou menos igual em
todas as sociedades faz supor que exista uma
base neurobioquímica que justifique seu
aparecimento.
Wagner Gattaz – Existe
um componente genético importante. O risco sobe
para 13%, se um parente de primeiro grau for
portador da doença. Quanto mais próximo o grau
de parentesco, maior o risco, chegando ao máximo
em gêmeos monozigóticos. Se um deles tem
esquizofrenia, a possibilidade de o outro
desenvolver o quadro é de 50%.
Drauzio – Como não são todos da
mesma família que desenvolvem o quadro, é
possível pensar que fatores ambientais colaborem
para o aparecimento da doença?
Wagner Gattaz – Estudos
genéticos são o melhor argumento de que nem tudo
é genético. Existe uma contribuição ambiental.
Pena que até hoje não tenhamos conseguido isolar
um único fator que aumente com certeza o risco.
Nesse sentido, a esquizofrenia
pode ser comparada a muitas outras doenças em
que não existem 100% de penetrância genética. É
necessário haver uma interação de fatores gerais
que vão desde o nascimento (há um número maior
de esquizofrênicos nascidos nos meses mais
frios) até fatores dietéticos, mas sem uma
resposta conclusiva. Sabe-se que existe uma gama
de fatores que causam ou impedem o
desencadeamento da doença.
EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO
Drauzio – No passado, o
tratamento da esquizofrenia era precário. Hoje,
houve um grande avanço farmacológico nessa área.
Qual a melhor estratégia para tratar uma pessoa
com essa doença?
Wagner Gattaz – Realmente,
o progresso foi muito grande. Na verdade,
começou no início dos anos 1950 com a introdução
do primeiro medicamento antipsicótico. Ele
provocou um esvaziamento dos hospitais
psiquiátricos que eram usados como asilos para
esses pacientes no passado. De lá para cá, esses
medicamentos evoluíram muito. Hoje existem
medicamentos com poucos efeitos colaterais que
atuam nos sintomas negativos da doença.
Essa é a questão-chave. Como foi
dito, o paciente com psicose esquizofrênica nem
sempre tem consciência crítica de seu estado
mórbido. Por que iria, então, tomar remédios
para o resto da vida, ainda mais se têm efeitos
adversos? Por isso, a principal causa de recaída
da doença era o abandono do tratamento. Com o
advento de novos medicamentos que são mais bem
tolerados, aumentou a aderência do paciente ao
tratamento e sua continuidade mesmo depois que
desaparecem os sintomas.
Além disso, como qualquer doença
na medicina, quanto mais precocemente começar o
tratamento, melhor. Não só porque o início
precoce impede que a doença provoque danos mais
sensíveis na personalidade do paciente, mas
também evita que ele abandone sua rotina de
vida, os estudos, sua atividade profissional,
preservando a estrutura socioeconômica que
melhora muito o prognóstico.
Existem estudos denominados
“Intervenção Precoce” que defendem o início do
tratamento antes da manifestação completa da
doença. Um deles está em andamento no Instituto
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Quando
se detecta alto risco para a psicose, e existem
critérios para determinar isso, prescreve-se o
tratamento precoce a fim de evitar o
desenvolvimento completo da doença.
Drauzio – Qual é a eficácia do
tratamento?
Wagner Gattaz – O
tratamento tem boa eficácia para fazer regredir
os sintomas negativos. Em muitos casos de
adultos jovens e adolescentes, é possível
conseguir que eles não interrompam suas
atividades e mantenham boa reintegração social,
o que evita muitos danos causados pela
esquizofrenia.
Drauzio – Esses medicamentos
ainda produzem alguns efeitos colaterais. Quais
são os mais frequentes?
Wagner Gattaz – A
primeira geração de medicamentos, que continuam
sendo usados inclusive porque são mais baratos,
atua bloqueando o sistema cerebral da dopamina.
Esse bloqueio simula os sintomas da doença de
Parkinson, uma patologia causada exatamente pela
falta de dopamina no cérebro, e ocorrem
problemas motores, tremores, torcicolos
violentos e rigidez muscular.
Esses efeitos colaterais mais
graves da primeira geração foram amplamente
abolidos com os medicamentos introduzidos na
última década. São mais caros, embora não custem
muito se comparados com outros métodos
terapêuticos na medicina. Alguns deles provocam
ganho de peso, que pode ser controlado com a
troca do remédio.
Drauzio – A administração desses
medicamentos é cômoda para os pacientes?
Wagner Gattaz – A
administração é cômoda, uma dose tomada por dia.
Atualmente, estão sendo introduzidos
antipsicóticos injetáveis, isto é, uma injeção
que o paciente toma a cada duas ou quatro
semanas. Isso facilita muito o tratamento e sua
manutenção.
ORIENTAÇÃO AOS FAMILIARES E
PACIENTES
Drauzio – Como devem ser
orientados os familiares para lidar com os
doentes?
Wagner Gattaz – A
primeira medida é esclarecer a família sobre as
características da doença. Ela precisa entender
que, se por acaso o paciente teve um surto de
nervosismo ou agressividade (o que é raro em
esquizofrenia), não se trata de mau caratismo ou
maldade. Ele tem uma doença orgânica como
qualquer outra, uma doença neuroquímica da qual
é muito mais vítima do que agente malfeitor.
Essa informação
ajuda a família a compreender melhor o problema
e as necessidades do doente. Em um terço dos
casos, mesmo a psicose desaparecendo, fica uma
pequena sintomatologia residual. A pessoa não
volta mais a ser a mesma. Permanece a diminuição
dos impulsos e ela não consegue mais dar conta
do que fazia antes. Por isso, muitas vezes, é
preciso baixar as expectativas em relação ao
portador de esquizofrenia. Esse é um fator que
pode até ser medido em questionários conhecidos
como “Emoções
Expressas da Família”.
Trabalhos mostram que, quando se reduz a pressão
familiar, melhora o prognóstico e diminui o
número de recaídas.
Drauzio – Além da medicação, o
que você recomenda aos doentes quanto ao estilo
de vida?
Wagner Gattaz – Passado
o surto agudo, os pacientes podem beneficiar-se
participando de diferentes programas que vão
ajudá-lo a reintegrar-se na sociedade. São
programas que incluem desde terapia cognitiva
específica para transtornos esquizofrênicos a
fim de ensiná-los a lidar com os sintomas e a
doença, até um treinamento de profissionalização
para aqueles que não conseguem retomar as
atividades que exerciam antes ou treinamento em
oficina abrigada para ajudá-lo a reintegrar-se
na sociedade. O tratamento ideal é sempre o que
proporciona melhor reintegração social do
paciente.
Fonte:
Dráuzio Varela
|